Espaço virtual que reúne o profissional psicólogo e o escritor amador em rabiscos de caminhos incertos.


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Um novo começo

Hoje, olhando pro calendário, atesto com certa vergonha que faz mais de um ano que afastei-me dos escritos neste blog. Fazendo as contas, esta lacuna refere-se ao período exato que aceitei a rica tarefa de atuar e coordenar um projeto em um hospital do Rio. De nome Educação Informal, o projeto é realizado com crianças e adolescentes com doenças crônicas em seus momentos de internação, normalmente prolongadas e, infelizmente, habituais.

Passei a conviver diariamente e intensamente com essas crianças e adolescentes, e suas particularidades e generalidades. Minhas manhãs foram preenchidas por eles. Ao final de cada trabalho, despedia-me delas, algumas de forma definitiva, mas levava-as comigo emocionalmente. Aprendi e continuo aprendendo sobre suas síndromes, a rotina de suas internações, a rotina dentro do hospital em áreas de precaução de contato – lavar a mão, colocar luvas e capote, tirar luvas e capote, lavar a mão, prosseguindo um ritual repetido inúmeras vezes por dia. Aprendi e felizmente continuo aprendendo e me surpreendendo, que por mais grave que sejam suas doenças, por mais adoecidas que estejam, elas continuam sendo, do dedo mindinho até os fios de seus cabelos, crianças e adolescentes.

Nas minhas ações diárias nas enfermarias, portando um computador cheio de jogos educativos, atesto a riqueza e a amplitude do lúdico e todas as suas facetas. Da possibilidade de criação de um espaço mais condizente com a própria infância, mesmo em um ambiente hospitalar.

Em meu trabalho, pelo sua proposta e objetivo, onde faço parte de um núcleo de humanização do hospital, lido diretamente com crianças e adolescentes e não com seus prontuários. Seus estados de saúde tornam-se fundo durante boa parte dos nossos momentos juntos, mas, por vezes, nos atravessam e viram figura, por conta de procedimentos médicos, medos, fantasias, dores presentes nestes períodos. Seus estados físicos e emocionais são refletidos neste espaço, inclusive as mudanças de humor que ocorrem, onde sou acarinhado inúmeras vezes por seus sorrisos no transcorrer de nossas relações, onde antes existiam caras que refletiam mais tristeza e preocupação.

Quando estou com elas, cria-se um momento de brincadeira e descontração, capaz de não apenas facilitar a própria permanência no hospital e adesão aos tratamentos, e de mantê-las próximas ao ‘contexto escolar’ e facilitar a permanência em suas escolas (objetivo principal do projeto que coordeno), como de transportá-las para algo mais próximo ao mundo infantil. Cria-se um espaço de licença poética, onde crianças brincam e divertem-se, mesmo em um local nada configurado para tal. Neste momento, percebo nitidamente a capacidade das crianças de irem além. Muito além da realidade da própria doença física, além dos diagnósticos e prognósticos, além do ambiente frio do hospital. No lúdico do jogo, elas exercitam conteúdos escolares, brincam, alucinam, divertem-se, e me divertem.

Vivencio uma emoção indescritível por estar com elas, um estado de plena entrega, esquecendo, algumas vezes, da hora e da fome, com momentos onde observo a minha própria dificuldade de ir embora. Fico muito feliz, de uma felicidade de sorriso bobo e largo, quando elas recebem alta, quando finalmente deixam os leitos do hospital, mesmo que temporariamente. Mas confesso, egoisticamente, que sinto falta dos Brunos, Gabrielas, Guilhermes, Wandersons, Willians, Vitórias... que nas suas permanências hospitalares marcam-me com constância profunda.