Espaço virtual que reúne o profissional psicólogo e o escritor amador em rabiscos de caminhos incertos.


sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Aos 36

Próximo de completar 36 anos (o texto estreia no blog após a data comemorativa), na tentativa de suprir meu desejo por açúcar, pego-me em um mercado dialogando com um consumidor mirim, bastante surpreso com a minha compra do dia, uma caixa de sucrilhos. Seu espanto é renovado ao saber minha idade, dando ao espanto, sem absoluto crivo social, voz e título: “você é velho” – o espanto neste momento passa para sua mãe, que tentando contornar a situação e seu incômodo, enche-me de desculpas.

Porém, sem muita preocupação com a censura materna, o menino continua. Demonstrando vasto conhecimento sobre valores nutricionais, infere que sucrilhos é alimento de criança, já que a caixa tem um desenho de bichinho e é muito doce. Para ele, um homem velho – leia-se ‘eu’ – tem que comer “comida que fica do outro lado” do mercado. Mas esta informação sobre a dieta correta foi abruptamente interrompida, já que sua mãe, como última tentativa de terminar seu embaraço, puxa o menino para longe da cena.

Assim, poderia dar muitos focos ao contar essa história, tirar algumas lições, parar de comer açúcar, mas... mas como assim, velho? Afinal, não sinto nenhum tipo de dor lombar e tenho poucos, muito poucos cabelos brancos – não entrei no mérito de que minha cabeça, cada vez mais, torna-se menos povoada por habitantes capilares, seja de que coloração for.

Após um tempo, algumas respiradas profundas, tendo a indignação pelo título de terceira idade, amenizada pelo açúcar em plena reposição, percebo que diante dos olhos do menino, os meus 35 anos eram tão distantes da sua realidade, que sim, eu sou por absoluto velho, do dedão do pé até o último fio de cabelo – ou um dos últimos sobreviventes. Pra alguém que nasceu, segundo a perspectiva dos filmes futuristas da minha infância, num período onde os carros deveriam voar e os empregados seriam robôs, um sujeito de 1977 está próximo e até faz parte de livros de História.

Por autorreferência, quando eu tinha aproximadamente 4 ou 5 anos, os 35 e 36 anos estavam situados na ordem do inalcançável. Provavelmente eu não tinha ideia de quantos anos meus pais tinham, muito menos meus avós. Eu separava-os por velhos e muito velhos. 

Com 4 e 5 anos, entendia a idade ou a muita idade, ao escutar que os limites e regras eram dados por aqueles que eu deveria respeitar por serem os “mais velhos”, ou mesmo a quem eu buscava em casos de dúvidas ou incompreensões. Por observação entendia a idade, que quanto maior a estatura, mais velho; e a muita idade, pelos flagrantes cabelos brancos, peles enrugadas e costas curvadas. Era quase uma ciência exata que adotava: quanto mais encontrava estes traços, mais velho o sujeito seria. 

Pelos meus olhos, ser adulto tinha um caráter chato. Afinal, muitas vezes escutava “quando você crescer” pontinho, pontinho, pontinho, e alguma previsão enfadonha, responsável e pouco atraente surgia da boca dos figurões mais velhos.

Mais uma vez a matemática entra em cena. Quanto mais velho eu ficava, inversamente proporcional, a brincadeira diminuía. Em compensação, quanto mais velho ficava, relativamente proporcional, os deveres aumentavam. Sendo assim, como alguém, em sã consciência, pode querer ficar mais velho?

No consultório, longe de uma resposta definitiva para esta pergunta, mas ganhando um contorno apropriado pelos clientes mirins, que com um novo espanto, ao descobrirem minha atual idade, partem para uma nova configuração do campo: “você tem a idade do meu pai!?!?” e/ou “você é velho e brinca”.

É... definitivamente fico mais confortável com este final. E que continue, anualmente, a soma de um dígito em minha identidade, possibilitando novos espantos nas relações com as crianças.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Irmão que nasce junto, irmão que nasce separado... muito separado

Quando criança, diante da minha condição de filho único, ansiava ter um irmão. Não consigo precisar, marcar no calendário, o período que acontecera, mas tenho a clara lembrança de que meu desejo foi exposto e imposto para minha mãe que, com sabedoria, acolhia o pedinte, mas não realizava o pedido.

Para mim, pouco importava se meus pais tinham condição de ter outro filho ou se o queriam, afinal, eu antecipadamente elegi-me como o responsável pelo planejamento e elaboração dos afazeres e brincadeiras que nos tomariam o tempo. Claro, que esta realização também não levava em conta que mesmo se os deuses e os anticoncepcionais conspirassem a meu favor, a realidade motora e cognitiva de um recém-nascido dificultaria nossas partidas de futebol.

Enfim, o tempo passou, troquei o irmão por um cachorro – desejo este realizado – e a vida seguiu um curso definitivamente mais especial para mim do que se estivesse dividido o espaço, o quarto, os pais e as broncas.

Por genitores diferentes, ganhara dois primos de primeiríssimo grau. Diferente do Bob – nome do meu presente canino – que precisei implorar e acordar responsabilidades sobre banhos e batismos fisiológicos, meus primos vinham sem pedidos ou ainda promessas. Chegaram e por aqui permaneceram.

Do laço que nossas mães traziam desde a infância, herdamos a frequência do convívio. A matemática era simples: elas encontravam-se e, como resultado, nós, os pirralhos, encontrávamo-nos. Porém, contudo, contanto, todavia a amizade não surgia da ‘forçada’ convivência e com o nascer dos dentes permanentes, já que tínhamos a escolha de engatinhar para lados opostos.

Por opção, passamos infância, passamos adolescência e continuamos passando a ‘adultice’ ligados, apesar dos distantes quilômetros e dos interesses distintos.

Num tempo em que a rede de dormir transformava-se em maquina de lavar, e a pequena piscina Tone – momento propaganda gratuita – agigantava-se ao receber monstros do mar e redemoinhos, primos tornaram-se amigos. Nas fotos e nas lembranças, eles – respeitando a ordem de chegada, um com suas pernas finas e joelhos desproporcionais e o outro, ou melhor, a outra com seus cabelos cacheados – avolumam-se nos álbuns e na memória, dificultando qualquer referência autobiográfica sem ter seus nomes por muito citados.

Da coleção de reminiscências intituladas “criações”, Nando está em sua maioria. Com os jogos de tabuleiro que produzíamos com sobras de cartolina, e com os jogos de quadra que adaptávamos à realidade dos espaços e escassez de material esportivo, tornamo-nos os maiores concorrentes da Grow no distrito de nossas residências. Quando estávamos juntos, imaginação não faltava, e como consequência, as invenções continuavam. De uma banda chamada Mosquitos Aloprados, com curto tempo de vida de um show apenas, até nossas produções em vídeo, com direito a programação jornalística e de entretenimento, o objetivo era o riso fácil, que felizmente nos acompanha até os dias de hoje.

Seguindo... Pra não ter toda atenção da família, mimos e badulaques, que cercam normalmente pimpolhos fofos como eu, Dani não esperou muito e chegou para dividir o foco. Com ela perdi definitivamente as pompas de uma estreia solo, mas ganhei uma parceria pra vida. Apesar da nossa diferença de gênero, nunca experimentamos a usual implicância presente entre meninos e meninas em certas faixas etárias. Pelo contrário, para eu estar com ela, brincávamos de Barbie (que fique claro que eu era o Bob da relação); e para ela estar comigo, brincávamos de Comandos em Ação. Juntos, sempre juntos, enfrentamos o medo do Beto Coelho e do ET cabeçudo do Spielberg; e dividimos os louros e as broncas quando executávamos ideias mirabolantes como encher seu quarto de talco e água para patinarmos.

Assim, após 35 anos, este texto surge pincelado de histórias minhas, que foram cruzadas, permeadas, salpicadas por histórias deles. Surge da lembrança de dois irmãos que vieram por caminhos paralelos, de barrigas diferentes. Irmãos que definitivamente se escolhem. 

segunda-feira, 6 de maio de 2013

No tempo do Smartphone

Um amigo, dia desses, comentou sobre minha disponibilidade para captar situações corriqueiras, que figuram como pano de fundo do fundo do fundo dos nossos trajetos diários, servindo de insumos pra minha escrita.

Observar, examinar, olhar com atenção são pré-requisitos básicos para candidatos a Sherlock Holmes ou verbos usuais de pessoas curiosas e, pejorativamente, fofoqueiras. Talvez por minha tamanha timidez, desde muito pivete, enveredava-me na espionagem do meu pequeno mundo, coletando dados suficientes e adquirindo segurança relativa para encher-me de coragem e, ai sim, pular no interior dos cenários.

Perdia horas admirando desde folhas navegantes que percorriam pequenas corredeiras que se formavam no meio fio após um temporal passageiro, até o divertimento envolvido em transferir pra plateia de uma peça ou filme a minha atenção, pela variedade expressiva que cercava os, agora, atores involuntários.

Cresci, adquiri óculos corretivos, e permaneci observando. De cenas usuais em praças de alimentação, elevadores e salas de espera, noto, reparo e presentifico os acontecimentos em histórias fantasiosas e cheias de tons cinematográficos. A existência apresenta-se em ambientes tridimensionais, onde conecto-me a variedade dos enredos e faço a escolha por afinidade ou reatividade, selecionando a temática com o simples girar de cabeça. Ação, drama, dramalhão, comédia, terror, suspense estão presentes nas apresentações espontâneas e gratuitas nos espaços de livre circulação.

Atualmente, diante de toda a diversidade existente nos ambientes urbanos, verifico uma constância nas exibições. Um novo elemento aparece nestes últimos anos e ganha cada vez mais espaço nas obras do dia a dia, recebendo papéis principais e críticas favoráveis. O multitalentoso smartphone.

É inegável o uso e funcionalidade dos celulares atuais, sendo o mais básico dos seus papéis a realização de ligações. Eu mesmo sou fã da complexidade de suas atuações, onde o mais simples dos modelos disponíveis no mercado cospe fogo, voa, e tem convicções políticas e religiosas.

Com o uso e o envolvimento íntimo, os telemoveis inteligentes obtêm nome, status e roupas, seguem tendências e recebem atenção especial dos seus donos, companheiros, parceiros ou amigos – o grau de intimidade varia de pessoa pra celular.

São objetos depositários de personalidade que encenam papéis variados de livre escolha por quem os dispõem. Vivem a relação a dois, despertam emoções variadas, e tem a capacidade de prender a atenção do parceiro, mesmo numa festa com a presença de outros estímulos. Aliás, é comum vermos um grupo de pessoas, em uma mesa de restaurante ou na tal festa referida anteriormente, em que todos se mantêm fixados na simples troca com seus aparelhos, ‘esquecendo’ todo o entorno. Acontece o chamado tête-à-tête.

E assim, enquanto olho para todos – todos é um exagero literário – e crio este texto, todos olham para ele, seu amigo, parceiro, companheiro... celular. 

quarta-feira, 10 de abril de 2013

O aprendiz de Harry Potter

Dia desses, conversando com uma amiga, comentávamos o quão fácil uma criança se diverte. Dependendo da idade, a brincadeira transforma espaços formatados em ambientes vivos que mudam a partir da escolha do seu criador.

Ontem, ao esperar o atendimento em uma clínica médica, deparei-me com um sujeito baixinho, de uniforme de colégio com manchas que pareciam ser de chocolate. De início, chega agarrado em uma das mãos de sua mãe e ao perceber que todos os olhares o encontravam, trata de logo esconder-se atrás de um gibi que rapidamente foi sacado de sua mochila. Aliás, fazendo uma breve observação, a tal mochila era uma verdadeira obra de arte, com inúmeros traços de canetinha, adesivos colados por todos os lados e manchas adquiridas com o tempo de uso, provavelmente criação do jovem artista que ali se encontrava.

Depois de alguns bons minutos, percebo que o menino não estava mais com o rosto coberto pela revistinha. Apesar de manter-se sentado, suas pernas, que não encontravam os limites do chão, movimentavam-se inadvertidamente pelo ar. E seus olhos iam para além do contorno corpóreo, percorrendo a extensão da sala de espera, até serem definitivamente fisgados por um pequeno objeto de procedência desconhecida e que vivia em uma mesa sem a presença de outros semelhantes. O objeto: um único incenso.

A partir desta visão, de quem encontra água no deserto, o menino se aproxima da mesa locada por uma senhora de óculos ‘fundo de garrafa’, que mantinha sua atenção auditiva presa ao telefone. Em uma comunicação silenciosa, cercada de sinais e trejeitos, senhora e menino acordam que este último poderia pegar o tal incenso, tendo a confirmação a partir do balançar da cabeça, em demonstração positiva da moça de cabelos prateados.

E daí, investido de uma força própria, o agora bruxo, toma sua varinha mágica, piruetando pela sala ao fazer inúmeros encantos, começando na direção de portas, vasos e afins, e prosseguindo envolvendo os, até então, tediosos presentes da espera médica.
Com muitos efeitos sonoros e uma incansável disposição, o aprendiz de Harry Potter fez o seu tempo e o meu passarem despercebidos, até que sou convidado a retornar ao contexto ‘sala de espera’ pelo atravessamento da voz do médico, ao pronunciar meu nome. 
Mesmo com a interrupção, toda aquela cena me fez recordar meus tempos de estatura reduzida, mais especificamente a lembrança de uma viagem para Cabo Frio que fiz com familiares – pais e tios, onde eu era a única criança do comboio.
Na época, passava na televisão – acredito que no Globo Repórter – uma série de reportagens baseadas nos documentários do Jacques Cousteau. Trago a nítida recordação da admiração e fascínio que aquele senhor magrinho me despertava, ao contar histórias dos oceanos e seus moradores.

Assim, tomado pela riqueza que via em suas aventuras, tomei emprestado seu nome e qualificações, lançando-me nas enormes dunas de tamanhos presentes no passado de Cabo Frio e na minha fantasia infantil. Como um destemido aventureiro, percorri um cenário cheio de riquezas e surpresas, transformando um galho de árvore, em meu cajado, que me auxiliava, tanto na locomoção pelos blocos de areia como na exploração dos tesouros e bichos que encontrava no caminho.

Fui Cousteau e muitos outros personagens ao longo da minha infância. Brinquei e dei ares mais interessantes ao caminho percorrido por uma criança no meio de adultos no ‘deserto’ cabofriense. Fiz, como o menino do consultório, ao criar um jeito mais gostoso de estar. E hoje, demonstro interesse genuíno por aquilo que meus clientes mirins trazem, disponibilizando a sala e os recursos lúdicos para que os mesmos escolham o caminho que querem seguir, onde agora sou incluído nas brincadeiras, virando novamente personagens, a partir do simples convite deles.



segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Todo carnaval tem seu fim

O carnaval passou e o ano finalmente teve seu início. Confetes foram varridos das ruas e avenidas, fantasias receberam cartas de alforria, e assim, homens e mulheres (re)abriram seu primeiro dia do ano em plena terceira semana de fevereiro.

Indivíduos que, em sua maioria, já receberam a promoção à categoria de adultos, agora rumam para os seus trabalhos vestidos de seriedade, deixando para trás o saboroso gosto dos dias sinceros de folia. Dias onde a brincadeira tornou-se o cotidiano.

Com um empréstimo de período curto, os ditos homens feitos tomaram de seus filhos, netos e sobrinhos o direito de brincar. Viveram num verdadeiro parque de possibilidades, contos e histórias de super-heróis e vilões, onde o que menos havia eram desavenças entre os personagens.

Os mesmos adultos que passaram o ano promovendo o amadurecimento de seus filhos, fecharam temporariamente os olhos para suas próprias regras e mergulharam nos atos infantis, vivenciando, muitas vezes, o publicamente incorreto para maiores de 18 – se bem que depois dos 12 anos estes atos já são considerados ‘mico’.

A porção adulta tirou férias e frases como “não faça careta para as pessoas” ou “não sente no chão com sua roupa limpinha” passaram a ser recriminadas pelos próprios pais, dando aos dias de folia um aspecto de faixa etária livre para a expressão lúdica.

No carnaval, mais velhos e mais novos se confundem no meio das fantasias e concedem para si a licença para a zombaria. Naquela fenda temporal, de intervalo entre as obrigações, é permitido mexer, tirar sarro, rir do outro e com o outro, terminando muitas vezes com corpos esparramados no chão, em sinal do cansaço das horas de divertimento.

E assim, em tom passado, nos despedimos na quarta-feira de cinzas dos adultos que viveram meninos e meninas ao vestirem trajes super poderosos. Despedimo-nos dos adolescentes temporários que contavam a quantidade de bocas beijadas, ou mesmo, que perderam a conta da quantidade de bebidas tomadas. Despedimo-nos dos infratores – mas estes, que independente da idade, merecem reprovação – que mancharam o carnaval com o mau cheiro de urina e de atos de vandalismo.

E como crianças contrariadas, que foram retiradas à força de suas brincadeiras, despedimo-nos do carnaval de cara fechada, emburrados pela troca involuntária da diversão pela hora de dormir ou ir para a escola.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Nuventizando

Em outro tempo vivi a vontade de escrever um livro onde pudesse juntar minhas lembranças infantis com minha experiência como psicoterapeuta de criança. O livro ficou na vontade, guardado na gaveta das propostas futuras, salvando-se alguns textos soltos, onde muitos – sua maioria – seguem sem ponto final.

Dias atrás, um dos escritos – e o desejo de dar corpo ao livro – retornou das profundezas do esquecimento em cores vivas ao gozar de um hábito de infância em plena ‘adultice’. Ao pegar um taxi, fui impelido a olhar pra fora, mais especificamente, a olhar pra cima... pro céu. Para escapar da sensação de aprisionamento em estar em um transporte amarelo canário, que pouco cumpria sua missão diante do entupimento das vias de suposta circulação, e pela inexistência de asas em meu corpo, percebi-me na prática de um exercício que muito fiz em minha meninice, inventar histórias com as nuvens, ou melhor, a partir das nuvens.

Comecei de maneira tímida, nomeando o que enxergava no grafismo das massas. Vi um cachorro cabeçudo, uma girafa de pescoço atrofiado, uma taça de sorvete e por aí foi. No calor das criações autorizei-me ir além, inventar histórias com as imagens que vislumbrava, linkando umas com as outras. Cada imagem que avistava era incorporada em uma pequena narrativa silenciosa.

As histórias foram tomando conta da minha viagem, se metamorfoseando em minha própria viagem. Construí “causos” juntando dinossauros com alienígenas, animais e sujeitos mutantes que andam de ônibus e trem, e que portam objetos de tamanhos irreais etc.

Após um tempo, imperceptível quantitativamente para mim, fui convidado a retornar a realidade pela insistência do taxista em me cobrar a corrida. Enfim, paguei, deixando temporariamente de lado, até a criação desta escrita, a ficção.

O fato é que saí provisoriamente de uma situação que se apresentava chata, cansativa. Uma corrida de táxi em pleno horário de rush.

Construí, brinquei, ajustei o mundo ao meu gosto. Fiz o que fazia quando criança, para as viagens de carro transcorrerem sem demora, para burlar os enjoos que sentia com o sacolejo do automóvel. Fiz o que crianças normalmente fazem para se proteger de situações desagradáveis, destrutíveis, disfuncionais.

Ajustando criativamente, as crianças se lançam em comportamentos que muito são incompreendidos e até tolhidos por adultos. Faça uma criança esperar uma consulta médica sentada por uma ou duas horas, ou mesmo ter de acompanhar seus pais nas compras mensais em um supermercado. Observe o quanto elas são capazes de criar, inventar, de transformar corredores de mercado em verdadeiros labirintos, ou canetas da secretária do consultório em aviões supersônicos.

O que me deixa em alerta como psicólogo e apaixonado pelo universo da arte infantil, é quando estes ajustamentos são apresentados de forma rígida e padronizada pelas crianças, demonstrando inflexibilidade em inúmeras situações que convidam para novas possibilidades.

Mas isso é assunto pra outra postagem (e assim vou acumulando dívidas). No mais, convido todos a espiarem um pouco da espontaneidade das crianças nos diversos espaços urbanos ou, quem sabe, experimentar olhar mais pro céu e ir além das nuvens. 




quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

O psicólogo e sua bola de cristal

Durante um papo descontraído com uma amiga, onde um dos tópicos da conversa passava por sua experiência como cliente de psicoterapia, acolho em meus ouvidos uma fala em tom jocoso (sempre quis usar essa palavra em algum escrito... enfim, sonho realizado) “psicólogos me dão medo”. Obviamente seu parecer não era direcionado ao espelho ou a um amigo matemático. Aquela frase ressoava em mim, psicólogo, o tal profissional que dá medo.

Com sua posterior explanação veio o esperado, que seu receio era a nossa “possibilidade” de desvelar o que permanecia oculto em um simples bate-papo, até então, descontraído, pelo menos pra mim.

O fato é que a visão dela não foi formada em seu período de isolamento social, em longos anos de meditação no Tibet. Pelo contrário, esta opinião por muito está presente em uma quantidade demográfica considerável, tornando o psicólogo um ser com poderes sobrenaturais, ou melhor, poderes sobre a mente humana – como se a mente fosse algo possível de ser destacada da pessoa como um todo, mas isso é papo para outra postagem.

Devemos considerar que muito desta ideia é reforçada pelo próprio profissional psicólogo, que se coloca no trono do saber a priori, sempre tendo algo a dizer, mesmo sendo uma bobagem tremenda, uma verborragia ilusória. É como se soubesse mais que a própria pessoa sobre si, que comprovadamente se atura 24 horas por dia nos 365 dias do ano.

Independente da experiência ou da linha de trabalho, psicólogos não têm bolas de cristal e nem são amigos de gnomos que sopram coisas em seus ouvidos. Considero que nós, e agora falo como parte de uma parcela dos psicólogos que não ganhou em sua formação a varinha mágica do suposto saber, buscamos ver o que é óbvio. E o óbvio só é possível ser visto por estarmos atentos aos nossos clientes, por aquilo que se apresenta ali, na relação terapêutica.

Mas é claro que existe muito encanto e mistério em supostos aprendizes de Merlin, que mesmo não dotados de capa, denotam alguns trejeitos como um coçar de barba (para aqueles que têm, se não o queixo liso já serve), um olhar penetrante com um leve levantar de sobrancelha e cabum, eis que a magia toma forma.

E outra coisa, e talvez a mais importante da noite passada. Estava ali com uma amiga, rindo e sorrindo. Ou seja, estava no óbvio, rindo e sorrindo. Então, favor não enxergar além.

 (Fonte da tirinha: Fan page Psicopatos, autor Mig, postado no dia 22/01/2013)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Brincando com a comida

Sentado e, até então, distraído com meu almoço em um pequeno restaurante próximo ao consultório, sou convidado a participar de uma sucessão de fatos em uma mesa logo adiante. Vindo dela, escuto um sonoro "chega!". E antes mesmo dos meus olhos encontrarem o emissor, recebo a confirmação da mensagem, com sua repetição em um tom mais baixo, mas que mantinha a firmeza da palavra. Na mesa, uma até então, suposta mãe segura e sacode repetidas vezes uma das mãos de uma criança de aproximadamente uns 6 anos (seu suposto filho), fazendo-o largar alguns palitos que caiam sobre seu prato.

Ao observar aquela mulher, seu gestual e fisionomia, enxergo com o auxílio da minha doce miopia, um dragão corpulento que perdera a habilidade para cuspir fogo, mas que mantinha a combustão interna, não conseguindo evitar a fumaça por suas narinas enquanto despejava seu sermão materno durante a mastigação de sua última garfada ou de sua última presa. No meio do "você não para quieto", "a hora de comer não é a de brincar", escuto pela primeira vez a voz do infante em tom afirmativo: "Mãe, mas eu gosto é de brincar!". E pegando uma batata-frita com uma das mãos, consegue habilmente prender as suas extremidades em um palito, completando verbalmente: "Olha, D de Daniel. O meu nome". E um imediato riso surge – em mim também, mas escondido por meus lábios passa despercebido – desses travessos que atravessam os dentes que permanecem fechados, devorando, posteriormente, a sua criação.

A mãe, abalada pela resposta, mas não se dando por vencida, solta um inapropriado e destruidor "quero ver quando você tiver filhos". E, imediatamente dando de ombros, o menino responde de forma simples, como se aquela mulher falara a maior bobagem de todo o globo terrestre: “ué, vou continuar brincando", passando um palito para sua mãe como um convite para a brincadeira, mas fazendo apenas com que a adulta da relação o pousasse na mesa e encerrasse o assunto.

E eu, de forma silenciosa, espero que ele continue brincando por muitos ou todos os seus anos. E me faço lembrar que uma semana antes convidava o filho de uma amiga a construir castelos com saches de açúcar em uma cafeteria.

As crianças são lúdicas e se expressam através desta mesma ludicidade. Pena que nós adultos entendamos pouco do universo infantil, já que os anos transformam a nossa criança em vagas lembranças presentes apenas nas fotografias amareladas distribuídas em álbuns guardados por nossos pais.

Ps: em um mês de janeiro, onde a maioria dos meus clientes mirins estão de férias, sinto um aperto de saudade.