Espaço virtual que reúne o profissional psicólogo e o escritor amador em rabiscos de caminhos incertos.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Nuventizando

Em outro tempo vivi a vontade de escrever um livro onde pudesse juntar minhas lembranças infantis com minha experiência como psicoterapeuta de criança. O livro ficou na vontade, guardado na gaveta das propostas futuras, salvando-se alguns textos soltos, onde muitos – sua maioria – seguem sem ponto final.

Dias atrás, um dos escritos – e o desejo de dar corpo ao livro – retornou das profundezas do esquecimento em cores vivas ao gozar de um hábito de infância em plena ‘adultice’. Ao pegar um taxi, fui impelido a olhar pra fora, mais especificamente, a olhar pra cima... pro céu. Para escapar da sensação de aprisionamento em estar em um transporte amarelo canário, que pouco cumpria sua missão diante do entupimento das vias de suposta circulação, e pela inexistência de asas em meu corpo, percebi-me na prática de um exercício que muito fiz em minha meninice, inventar histórias com as nuvens, ou melhor, a partir das nuvens.

Comecei de maneira tímida, nomeando o que enxergava no grafismo das massas. Vi um cachorro cabeçudo, uma girafa de pescoço atrofiado, uma taça de sorvete e por aí foi. No calor das criações autorizei-me ir além, inventar histórias com as imagens que vislumbrava, linkando umas com as outras. Cada imagem que avistava era incorporada em uma pequena narrativa silenciosa.

As histórias foram tomando conta da minha viagem, se metamorfoseando em minha própria viagem. Construí “causos” juntando dinossauros com alienígenas, animais e sujeitos mutantes que andam de ônibus e trem, e que portam objetos de tamanhos irreais etc.

Após um tempo, imperceptível quantitativamente para mim, fui convidado a retornar a realidade pela insistência do taxista em me cobrar a corrida. Enfim, paguei, deixando temporariamente de lado, até a criação desta escrita, a ficção.

O fato é que saí provisoriamente de uma situação que se apresentava chata, cansativa. Uma corrida de táxi em pleno horário de rush.

Construí, brinquei, ajustei o mundo ao meu gosto. Fiz o que fazia quando criança, para as viagens de carro transcorrerem sem demora, para burlar os enjoos que sentia com o sacolejo do automóvel. Fiz o que crianças normalmente fazem para se proteger de situações desagradáveis, destrutíveis, disfuncionais.

Ajustando criativamente, as crianças se lançam em comportamentos que muito são incompreendidos e até tolhidos por adultos. Faça uma criança esperar uma consulta médica sentada por uma ou duas horas, ou mesmo ter de acompanhar seus pais nas compras mensais em um supermercado. Observe o quanto elas são capazes de criar, inventar, de transformar corredores de mercado em verdadeiros labirintos, ou canetas da secretária do consultório em aviões supersônicos.

O que me deixa em alerta como psicólogo e apaixonado pelo universo da arte infantil, é quando estes ajustamentos são apresentados de forma rígida e padronizada pelas crianças, demonstrando inflexibilidade em inúmeras situações que convidam para novas possibilidades.

Mas isso é assunto pra outra postagem (e assim vou acumulando dívidas). No mais, convido todos a espiarem um pouco da espontaneidade das crianças nos diversos espaços urbanos ou, quem sabe, experimentar olhar mais pro céu e ir além das nuvens. 




Um comentário:

  1. Ola! Acabei de conhecer seu blog pela luciana aguiar e estou gostando muito! Seus textos fluem maravilhosamente!! Nao deixe de publicar seu livro de lembrancas infantis!!!! ^_^

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